A ficção científica, enquanto gênero narrativo, traz a capacidade de criar ambientes fantásticos e futuristas. Desde a sua criação, esse cenário serve como um fundo para críticas políticas e sociais do presente. Assim, por mais que a ambientação fantástica seja um dos principais motivos que atraem o público, o enredo crítico vai conquistando seu espaço, discretamente. E é essa aproximação com a realidade que entrega ao espectador a sensação de uma obra completa e bem elaborada, trazendo questionamentos sobre o presente através do vislumbre de um possível futuro. Essa característica da ficção foi colocada em prática de forma magnífica em ‘The Expanse’, série da Amazon Prime Video.
Baseado na obra de James S. A. Corey (pseudônimo de Daniel Abraham e Ty Franck), a série apresenta um Sistema Solar colonizado pela humanidade, onde James Holden (Steven Strait), oficial do transportador de gelo Canterbury, se envolve em um acidente que ameaça a paz entre Terra, Marte e o Cinturão. Enquanto isso, em Ceres, o detetive Josephus Miller (Thomas Jane) deve encontrar Juliette “Julie” Andromeda Mao (Florence Faivre), uma terráquea desaparecida no Cinturão. Na Terra, Chrisjen Avasarala (Shohreh Aghdashloo), Executiva das Nações Unidas, utiliza-se de qualquer método para evitar uma guerra entre seu planeta e Marte. Logo, as três narrativas se encontram em uma conspiração que ameaça toda a humanidade.
Inicialmente produzida pelo canal Syfy e comprada pela Amazon Prime Video após a terceira temporada, ‘The Expanse’ constrói um enredo instigante que, em nenhum momento, perde o ritmo. Pelo contrário, a história é bem desenvolvida, evoluindo com naturalidade, conquistando a atenção do público. Dentre tantos questionamentos, o principal debate da série é em relação à colonização espacial. Afinal, esta é o avanço da humanidade pelo espaço ou estamos criando nossa própria extinção? Várias são as obras audiovisuais que trazem essa indagação, mas ‘The Expanse’ é construída através de várias camadas, possuindo um capricho que nem todas as histórias de ficção conseguem ter.
A série é recheada de referências históricas. A ideia da colonização, por si só, é um exemplo disso. Independente de ser um continente ou cinturão de asteroides, o colonizado será subjugado em relação ao colonizador, que sempre terá vantagens. No caso da narrativa, além de armamentos mais modernos e eficazes, também há uma vantagem biológica, já que os belters, aqueles nascidos no cinturão, possuem uma deficiência em seus organismos que não permite que vivam fora de uma gravidade artificial, sofrendo insuportáveis dores ao pisarem em qualquer planeta.
A influência mitológica também é utilizada na construção de mundos, tanto pelos autores quanto pelos personagens. Marte, o nome romano do Deus da Guerra, é uma potência militar, com armas e naves extremamente modernas. E, quando o povo coloniza uma lua ou planeta, batizam com o nome de algum personagem da mitologia greco-romana. Esses pequenos detalhes, que podem passar despercebidos para espectadores casuais, conquistam o público fiel, aproximando a narrativa ficcional da narrativa histórica da humanidade. A história se repete em um nível galáctico
Ao longo da série, o público acompanha Holden e sua tripulação, agora no comando de sua nave Rocinante, envolvidos no conflito entre Terra, Marte e o Cinturão, pelo controle da protomolécula, uma tecnologia extrasolar que permitiu a abertura de portais para diversos planetas habitáveis. Esses portais marcam o início da colonização humana fora do Sistema Solar, ao mesmo tempo em que indaga-se quais seriam os perigos de usar essa tecnologia alienígena. Agora, a tripulação da Rocinante luta ao lado da Frota Combinada de Terra e Marte para proteger os planetas internos de Marco Inaros (Keon Alexander), um extremista do Cinturão que comanda a Marinha Livre, um exército belter que cruza o sistema em uma campanha de morte e destruição.
A última temporada traz um enredo reflexivo sobre as ações humanas, iniciando-se com um olhar melancólico para as consequências da guerra entre a humanidade, com sinais de extinção podendo ser vistos no horizonte. Além disso, mostra que a batalha é só uma parte da guerra, onde a estratégia e a disciplina são imprescindíveis para se obter vantagem. Como parte do jogo político, publicidade e caridade também são utilizados para tentar conquistar apoiadores. Diante de um conflito, em que qualquer ação pode mudar o equilíbrio, a simples sensação de confiança e vitória garantida podem ser um balde de água fria.
Assim como a própria narrativa, os personagens também possuem várias camadas, sem poderem ser taxados como heróis e vilões. Eles são mais complexos do que essa dualidade, tendo um amadurecimento conforme o andamento da história. Além disso, passam por conflitos internos que os fazem questionar seu caráter. Avasarala, por exemplo, começa torturando belters para terminar compreendendo que a humanidade só continuará viva se trabalharem juntos, independente do planeta de origem. Com um conflito que põe o Sistema Solar em risco, os personagens tentam não se perder em meio às batalhas. Eles são, acima de tudo, humanos.
Infelizmente, ‘The Expanse’ foi cancelada antes de terminar de adaptar a saga de livros. Seu encerramento foi tão bom quanto seu desenvolvimento ao longo das temporadas, apesar de alguns pontos não terem sido respondidos. Agora, com o conflito encerrado, a humanidade pode olhar para um futuro recheado de mudanças nas relações planetárias. Mas para saber as consequências do uso dos portais da protomolécula e as surpresas que os planetas internos guardam, somente lendo os livros. Ou torcer para outra emissora comprar os direitos da série e concluir a história.